terça-feira, 14 de junho de 2011

A paixão pelo espetáculo (inédito de abril 2011)

Com as caretas de Maragogipe, no último carnaval, brinquei e trabalhei, como se faz em artes do espetáculo, ainda que, no Brasil, brinquedo, brincadeira, brincante e brincador sejam para amadores. Profissional do teatro brinca em inglês (plays), francês (joue) e alemão (spielt), mas, em português, trabalha, não brinca em serviço. Decerto porque os primeiros profissionais da cena, como da música e das artes visuais, por aqui, eram escravos e libertos, negros e mestiços mais escuros.

Lá, terra de minha mãe Dulce, Vó Evangelina e Bisa Veneranda Grata (filha de padre), onde costumo ir para os sambas de roda de São Bartolomeu e devo voltar para o canto da Vozone e o Descimento da Cruz da Paixão, é um belo laboratório de pesquisa. Há pouco, seu carnaval virou patrimônio imaterial da Bahia e eu pude este ano confirmar um maior orgulho de ser maragogipano (lembrando o de ser baiano, de que já se falou). Lá ainda (?) existe Secretaria da Cultura e Turismo e sua marca são as máscaras, símbolo maior das artes do espetáculo e da própria humanidade.
Cláudio Pestana e Gabriel Rodrigo Carvalho Souza operam o descenso em foto de Júnior de Major.


Ser pessoa (do teatro grego – persona – máscara), pela tradição cristã e romana, é se ter direito a nome e cara reconhecidos. E é o olhar do outro que legitima a pessoa, alimenta o artista e dá prazer ao mascarado.
Ser sedutor é estratégia cotidiana, ordinária, da qual se tem pouca consciência (o que chamo de teatralidade). Em momentos extra-ordinários, como o carnaval, brinca-se: "você me conhece?". Esconde-se o rosto, muda-se postura e voz, recorre-se ao grotesco e ao sublime mais incomuns na pessoa. Mas, em dado momento, o mascarado se revela, quebra o encantamento e goza o encontro.
Os outros são luz para cada um de nós. Vencer a solidão e buscar luz é sinal de vida. A tragédia recente de Realengo nos lembra: isolar-se e buscar a morte é o contrário. Plantas buscam luz. Animais (inclusive humanos) buscam vida e gozo nos outros (os humanos de modo bem consciente), embora pássaros e abelhas, em seus rituais, também o façam, como cantou Cole Porter.
A paixão pelo espetáculo é humana, mas a desconfiança intelectual em relação ao espetáculo é enorme. Talvez, numas culturas, ame-se mais o espetáculo que em outras. Salvador e seu Recôncavo, por exemplo, devem estar entre as primeiras. O carnaval de Maragogipe e sua Semana Santa resumem bem isso. É certo que o carnaval brasileiro, entre o fim do império e o início do século XX, tentou abandonar a sujeira e outras inconveniências do entrudo, substituindo-as pela participação familiar e de mascarados, à moda europeia. Lembrei-me muito do que vivi em Nice, França, em 2009, este ano em Maragogipe, ainda que cá com álcool nas ruas e exibido prazer no contato pessoal, talvez por nossa intimidade com o espetáculo, já que "baiano não nasce, estréia" etc.
Lembro-me de, com sete anos, ter visto de uma janela da Casa de Gregório de Mattos, já então a Federação Espírita Baiana, na Semana Santa de 1958, o espetáculo da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, A Via Sacra, de Henri Ghéon, apresentado num palco armado em torno do Cruzeiro de São Francisco. No início, os atores saíam da porta principal da famosa igreja barroca. Cantava o Coro dos Frades do Convento. As fotos hoje testemunham a multidão então presente, neste barroco baiano vivo de nosso Centro Histórico (por que chamá-lo de Antigo, se nem os tais italianos o são?). O da cidade da Bahia, barroco e, historicamente, moderno, é como seus pares, um Centro Histórico, ora!
Mas multidão ainda maior ia ao Dique do Tororó, durante cinco dias a cada ano, para a Encenação da Paixão de Cristo, na primeira metade da década passada, atualizando a vocação barroca baiana. Fico feliz de saber que haverá espetáculo monumental nesta Semana Santa na Concha Acústica do TCA, mas nossa cidade merece mais, quem vive nela e quem a visita, sobretudo na baixa estação, já que a alta está cheia de espetáculos.
Hoje as cidades são os maiores teatros. E a barroca Salvador tem vocação e experiência. O que falta? Artistas e técnicos, com certeza, não!

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