terça-feira, 14 de junho de 2011

Viagens à África I (Cenaberta n. 90 Coimbra PT 18.12.2010)


Devo à Cena Lusófona (dirigida por António Augusto Barros), minha primeira viagem à África, em 2002. Devo a Vivaldo da Costa Lima, razão de meu texto que apareceu aqui, ter conhecido o Ilê Axé Alaketu de Sintra, que, após recente visita, me inspira, ainda pertinho, cá em Lisboa. Devo sugestões afro-lusófonas ao saudoso Luciano Diniz (o melhor aluno de Vivaldo), com quem vim a Portugal duas vezes. E devo a José Cerqueira Filho e Jary Cardoso meu texto para Vivaldo. Espero resgatar, essas dívidas, retomando o projeto de escrita sobre minhas três viagens à África, tratando aqui já da primeira. Depois falarei das outras, de 2003, ao Marrocos, para a XXV Universidade de Verão Al Moutanid Ibn Abbad e de 2005, ao Mali, para a Université Ouverte des Cinq Continents, aqui e alhures.


São Tomé e Príncipe é um pequenino país arquípelago de menos de 1.000 km² e 200 mil habitantes, no Golfo da Guiné, junto à Linha do Equador, desabitado até 1470, quando é ocupado pelos portugueses, para a exploração da cana de açúcar e, logo depois, transformado em entreposto de escravos. Tomado pelos holandeses, à mesma época que parte do Nordeste do Brasil, o arquipélago, onde a abolição da escravatura é de 1876, ao longo do século XIX, passa a abrigar culturas de cacau e café, completando sua paisagem e cultura. Em 1975, constitui-se em país independente de Portugal.


Viajei para o Festival Gravana 2002, que foi de 4 a 18 de Agosto, numa ação da Cena Lusófona, do Grupo HB de São Tomé e da Direcção Nacional de Cultura sãotomense. Aprendi logo que a palavra gravana possui o sentido náutico de vento fresco de Sul e Sudeste, do Golfo da Guiné e corresponde à estação seca em São Tomé, onde "safar gravana" é gíria para desembaraçar-se, trabalhar rapidinho. Fiz palestra sobre as artes do espetáculo na Bahia, com dois vídeos da série Bahia Singular e Plural sobre os folguedos de mouros e cristãos e uma leitura dramatizada do folheto de cordel História do soldado jogador, de Leandro Gomes de Barros.


Além de espetáculos e outras palestras, o tesouro da viagem foram os espetáculos de grande participação popular que presenciei, dois autos carolíngios, relativos à história européia dos séculos VIII e IX, recriados pela oralidade e por livros, dos quais uma matriz é a famosa Canção de Rolando. São como os folguedos, "brinquedos" e "brincadeiras" que existem na Bahia e em outros lugares do Brasil, onde, inclusive, se encontram, também, autos carolíngios.


O maior, em duração e ação, o Auto de Floripes, sobre os conflitos do Imperador e os 12 Pares de França com os Mouros, foi da madrugada à noite, por toda a cidade de Santo Antonio, na Ilha do Príncipe. Os pequenos tablados de madeira e palha (para pontes, palácios etc) me lembraram o que vivi em minha infância na Bahia. Os 12 Pares, de tantos folhetos de cordel brasileiros, portavam seus nomes em faixas sobre os figurinos, inclusive Ricarte, que engana os mouros, como fez o soldado francês jogador, também chamado Ricarte, do folheto de Leandro, com seus superiores, ao ser encontrado jogando cartas numa igreja, quando explicou que apenas rezava as sagradas escrituras (Ás, o Onipotente, 2, as duas tábuas da lei, 3, a Santíssima Trindade...).


O Tchiloli, menor em espaço e tempo, mas também precioso, na Ilha de São Tomé, nos levou a uma clareira, no meio da mata e de antigas plantações. Da tarde até o anoitecer, acompanhamos o julgamento do filho do Imperador, entre música, danças, máscaras e personagens femininos e masculinos feitos por homens. Tchiloli, cujo título completo é A Tragédia do Marquês de Mântua e do Príncipe D. Carlos Magno, seria o termo forro (português local da tradição oral) para a palavra teoria. Ora, teatro e teoria são palavras que surgiram junto com os fenômenos que denominam e que valorizam a visão. Teoria é a visão de um objeto por um sujeito. Teatro é o espaço e ação para a visão. Nesse caso, seria o conflito do Imperador, entre fazer valer a lei (e punir o filho por seu crime) com o pai, perdoando-o. Acho que ali essa "teoria" não teve solução...

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