domingo, 24 de julho de 2011

1970 O Ano do Bode (e das Begônias...)

Para divulgar a programação da Semana Santa de 1970 no Teatro Vila Velha, um grupo de atores (na imagem abaixo, a partir da esquerda: Letícia Régia, Frieda Gutmann, Dulce Bião, Armindo Bião [meio oculto atrás da irmã], Vástia Versoza, Célia Ferreira e Lúcio Mendes; e fora da foto, mas dentro do fato, estava também Lia Azevedo, que era foca do Jornal da Bahia e ajudou na solução do que se tornaria um problema) saiu em cortejo do Passeio Público até a Praça da Sé, lendo para os passantes o folheto de cordel sobre os recentes assassinatos na família Souto Maia, interagindo com os populares Floripes (da Ladeira da Montanha) e Mulher de Roxo (da porta da Sloper) e visitando as sedes de jornais então no centro da cidade, entre os quais A Tarde (na Praça Castro Alves), que publicou a nota abaixo. O grupo foi levado pela polícia, do Bar Brasil, na Praça da Sé, de camburão, para a Delegacia de Jogos e Costumes, então na Rua da Misericórdia, de onde retornaram de táxi ao Vila, com dinheiro de uma vaquinha feita na mesma Delegacia.

A classe teatral baiana estava se movimentando para a criação do Plano Piloto Classe Teatral Organizada - CLATOR, que produziria o polêmico Macbeth de Arimã no Teatro Castro Alves. Na foto de cena (de Lúcio Mendes) abaixo, aparecem, a partir da esquerda, Leonel Nunes, Carlos Petrovich, Raimundo Melo, Armindo Bião, Frieda Gutmann, Reinaldo Nunes e Antônio Góes, entre outros.

 Após a reação de parte da imprensa, de João Augusto, Paulo Francis, Carlos Drummond de Andrade e da Sociedade Protetora dos Animais, toda a equipe do espetáculo foi levada à Polícia Federal, defronte do Mercado Modelo, ao lado do Cais da Baiana, para um sermão, reprimendas e conhecimento da portaria abaixo, assinada pelo Delegado Regional, Cel. Luiz Artur de Carvalho, que, então, de modo firme, sugeriu ao pessoal das Begônias (Letícia Régia e Armindo Bião) providenciarem seus passaportes e saírem do Brasil, o que foi feito mesmo pouco depois...

Por demanda de amigos do jornal A Tarde, escrevi sobre o Macbeth o depoimento abaixo,
que foi efetivamente publicado em abril ou maio de 2009:

O bode e o sacrifício do bode
Na semana santa de 1970, deveríamos estrear, no Teatro Vila Velha, com direção de Haroldo Cardoso, uma montagem de “Joana D’Arc entre as chamas”, de Paul Claudel, tradução de Dom Marcos Barbosa. Mas a censura proibiu e usamos a pauta do teatro para apresentar o happenning “Eis o homem”, com coordenação de Luciano Diniz. Tratava-se da circulação pelo palco e platéia do teatro de vários artistas e simpatizantes, de teatro, música e artes plásticas, ao som de música ao vivo, de todo tipo, da serenata ao improviso, e de música gravada, do sacro ao pop, e sob projeções de imagens de arte sacra e de espetáculos de cabaré. Divulgando esse evento, e outros que nosso João Augusto nos motivara a realizar nessa semana santa no Vila, nós, bem cabeludos, usando figurinos do acervo do teatro, circulamos do Passeio Público até a Praça da Sé, levando flores de papel de Tia Cota para entregar à Mulher de Roxo na Rua Chile (o que de fato fizemos), e parando na Praça Castro Alves, onde cruzamos com um colorido, sinuoso e insinuante Floripes, para que eu lesse um folheto de cordel, recentemente publicado, que tratava do jovem do bairro da Graça que matara, também recentemente, toda sua família. Fomos levados por um camburão à antiga Delegacia de Jogos e Costumes, na Rua da Misericórdia, que não existe mais, porque nos consideraram perturbando a ordem pública. Exigiram que voltássemos ao Vila de táxi, para trocar de roupa e, como não tínhamos dinheiro para isso, nos pagaram o táxi. No dia seguinte, saía uma foto nossa em A Tarde.
Foi nessa semana santa que muitos de nós fomos morar juntos, em comunidade, num quarto e sala no Porto da Barra. Éramos As Begônias, conforme sairia na imprensa de Salvador na época. Foi aí que recebemos os argentinos Enrico Ariman e Laura Madanès. Como a imprensa chegou a noticiar, ele se parecia com Charles Manson, o místico que há pouco assassinara a atriz Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski. O verão deixava então lugar às marés de março e às chuvas de abril. E o teatro baiano tentava se organizar num plano piloto CLATOR, que acho que significava “classe teatral organizada”. Foi nesse momento, que surgiu a ideia de se produzir um grande espetáculo, que seria produzido por Roberto Santana e Leonel Nunes e dirigido por Enrico Ariman. Logo o movimento se cindiu, com a saída de nosso João Augusto, que faria oposição ferrenha ao espetáculo, que veio a ser o Macbeth, alinhando-se nisso até ao indefectível Paulo Francis, à Sociedade Protetora dos Animais, mas, também, ao grande poeta de ferro Carlos Drummond de Andrade.
Os ensaios foram uma loucura, ou várias, inclusive uma bem baseada na cabala e outra na insônia (como “Macbeth trucida o sono”, aconteceram ensaios durante horas e horas, noturnas e diurnas, e se marcou quase um ato inteiro da peça assim, na insônia). O fato é que, em fins do outono austral, estrearam no TCA, o que chegou a ser chamado de ópera, 22 atores e 33 crianças, embora, nos dias seguintes, o número de crianças fosse progressivamente se reduzindo e, quase, também, o de atores. Representava-se, atuava-se, cantava-se, gritava-se, orava-se, com, em uma das cenas de feitiçaria, numa estrutura que descia sobre o palco, urubus vivos amarrados (que foram morrendo ao longo das quatro apresentações, sempre lotadas, no TCA), com incenso (muito), vinho distribuído para o público (dionisiacamente), assim como 1.500 palmas de coqueiro (para representar a floresta que andaria, realizando a terceira profecia das feiticeiras, do final do Macbeth) e, para reafirmar o caráter trágico (na tradição grega, tragédia é também o canto do bode) do texto de Shakespeare, e também para aludir aos sacrifícios de animais do candomblé, matava-se um bode em cena. Nosso Carlos Petrovich coordenava essa parte. Depois, embebidos no sangue do sacrificado, os atores desciam para a platéia. O sangue era quente e salgado. E a enfermaria do teatro precisou atender alguns espectadores. Escândalo! Sim, a carne do bode era compartilhada, depois do espetáculo, por alguns funcionários do teatro. Na estreia, o bode só morreu fora de cena, de onde se ouviu um gemido. Nos três dias seguintes, não. O chão ficava sempre manchado de sangue, como as mãos de Lady Macbeth. Por único cenário um grande ataúde. Os figurinos, muito simples, longas túnicas brancas, manchadas por terem sido embebidas em chá e uma iluminação surpreendente, que projetava imagens, e sombras, por todo o TCA, que chegou então a ser comparado a uma capela sixtina em movimento. E o destaque do elenco, o jovem de 14 anos Marco Antonio Soares, que fazia Malcolm e que ficaria conhecido como Marquinho Rebu.
A repercussão na imprensa local e em jornais do sul, inclusive em O Pasquim, foi grande. Tanto, que se produziu uma nova montagem, que voltaria a cartaz e faria tournée pelo Nordeste, já sem o sacrifício do bode. Mas, antes disso, a Polícia Federal convocou todo o elenco e equipe do espetáculo a sua sede, ao lado do Mercado Modelo, e todos tiveram suas atividades teatrais suspensas por 30 dias e alguns receberam fortes sugestões de tirarem os passaportes e saírem do país. Foi o caso de As Begônias, que abandonaram o Macbeth, foram de ônibus para o Rio de Janeiro, de navio para Lisboa e de carona para Londres, aonde chegaram na transição do verão para o outono boreais, logo após as mortes de Jimi Hendrix e de Janis Joplin, cujas notícias os pegaram em plena estrada. Consta que Ariman e Laura teriam sido levados até a estrada Salvador Feira e deixados por lá, para se irem embora da Bahia. Muito depois, soubemos que Ariman teria dirigido um outro Shakespeare, num dos países andinos, com um elenco composto por mendigos.
Depoimento de Armindo Bião (CNPq, UFBA, ERAMUS MUNDUS), de Paris, em 16.04.2009

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